“Ponciá Vicêncio gostava de ficar sentada perto da janela olhando o nada.” Ponciá Vicêncio não tinha muitas lembranças do pai, homem que não parava em casa. Quando o avô morreu, era bebê de colo, ainda assim, Ponciá lembrava-se do velhinho, homem curvado que andava com o braço mutilado para trás. Ponciá Vicêncio, com a mãe, trabalhava o barro, enquanto o irmão, com o pai, trabalhava a terra, na propriedade dos brancos.
Até o dia em que ela pegou o trem para a cidade; carregou trouxa, sonhos e o abecedário com o qual se castigava — escrevia, repetidas vezes, o nome que para ela era vazio, “na tentativa de se achar, de encontrar o seu eco”.
A primeira noite na cidade, foi na porta da igreja. A segunda, em casa de família, “aprendendo a linguagem dos afazeres de uma casa da cidade”.
Ponciá Vicêncio casou-se. Vivia com seu homem, enquanto o irmão a procurava e a mãe, sem saber o paradeiro dos filhos, sonhava em tê-los de volta à terra.
Mas eles não podiam desafiar o tempo. Precisavam viver. Esperar.
“O humano não tem força para abreviar nada e, quando insiste, colhe o fruto verde, antes de amadurar. Tudo tem o seu tempo certo. (…) A gente semeia e é preciso esquecer a vida guardada debaixo da terra, até que um dia, no momento exato, independentemente do querer de quem espalhou a semente, ela arrebenta a terra desabrochando o viver. Nada melhor que o fruto maduro, colhido e comido no tempo exato, certo”.
Ponciá Vicêncio, herdeira de tão grande sofrimento, personifica a história dos negros para que, viva na memória, ela possa ser reescrita. No barro, Ponciá molda grãos de areia, cada um uma vida, que, misturadas ao tempo, compõem a história.
Neste romance, Conceição Evaristo nos emociona. Ponciá Vicêncio é história repleta de poesia, tristeza, alegria, sonhos, desencantos, caminhos e desvios, tal qual é a vida. Em Ponciá, Evaristo criou uma personagem-memória. Ponciá Vicêncio, sente-se nada, um vazio, mas é para nós, o todo, a conexão dos tempos com as pessoas e com os sentidos. O romance de Conceição Evaristo é pletora de cheiros, cores, sensações; é romance social que aborda questões raciais, mas, sobretudo, é sentimento.
Conceição Evaristo. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições. 2003.