1o ato
Maria Aparecida
48 anos, mãe, vendedora autônoma.
A tarde estava quente, sem vento, úmida. Na porta do banco, uma senhora, um garoto e uma caixa de balas.
— Quando sair, a senhora pode me dar uma ajudinha?
— Vou ver o que posso fazer.
Lá dentro: dinheiro, ar condicionado, silêncio.
— Quando sair, você vai ajudar a moça, mãe?
— Vou comprar bala.
Choque térmico. Seria bom ficar ali, mas a realidade está do lado de fora.
— Boa tarde, quanto é o chiclete?
— Um e cinquenta.
Sem hesitar, a nota atravessou o espaço que me separava daquela mulher. Uma nota foi, duas moedas voltaram. Conectamo-nos.
— A senhora trabalha sempre aqui?
— Ah, filha, tô aqui nessa área uns, pelo menos, quinze anos. Esse aí nem era nascido.
— E como chama esse menino lindo?
Os olhos eram castanhos. A pele brilhava um tom marrom e os caracóis sobre a cabeça traziam um papel de bala pendurado.
— Marlo.
— Posso tirar esse papel de bala preso no seus cabelos?
— Hum?
— Um papel…
— Ah!
Atrás deles, uma sacola de viagem entreaberta não quis dar dica de o que guardava. Mas a marmita, em cima dela, mostrava que haviam comido arroz, feijão, alguma verdura e carne. Mais ao fundo, um pouco escondido por um vaso de plantas, a transparência de um saco plástico revelou cortes gordurosos de carne crua.
A mulher estava sentada, encostada no vidro do banco. O garoto estava deitado de bruços, brincava com carrinhos. Papelão fazia o piso.
— Filho, ou neto?
— Meu caçula.
— Quantos anos?
— Oito. Mas tenho uma neta também. Olha só.
A lateral da caixa de balas estava enfeitada com o sorriso inocente de uma menina atrás de um bolo de aniversário com três velas.
— Linda. E sua filha?
— A mãe dela? Tem dezenove. Casou. Graças a Deus. O marido levou ela e cuida bem das duas. Eles são evangélicos. Eu não. Eu sou católica. Mas só deles não se envolverem com o crime tá bom, né? Não bebe, não fuma. Ela trabalha, ganha um salário. Um salário! Sabe o que é isso? Puro, assim, sem mais nada. Eu acho que é bom porque não tá na rua, né? Mas bem que podia ter uns benefícios. Sabe? Vale-transporte, alimentação…nada disso ela ganha.
— É, deveria ganhar. E o marido dela?
— Trabalha também. Eles são tudo trabalhador.
— E esse menino? Marlo? Estuda?
— Vixi! Isso aí é danado. Eu falo com ele: “precisa estudar menino!” Quando perde nota brigo. Até bato nele. Mas não adianta. Taí, ó. Pegou recuperação. Vai fazer prova terça-feira, mas não vai passar não, né? Não estuda! Mas eu falo pra ele todo dia: “se não estudar, não tem oportunidade, vê eu”. Tô aí, né, menina. Trabalho todo dia, o dia todo. Não pego preguiça não. Mas só posso fazer isso aqui mesmo, que eu tenho problema de pulmão.
— É mesmo? Mas a senhora tem que se tratar.
— Adianta não, menina. Tenho bronquite, deu diabetes, deu problema no coração. E essas coisas cê sabe, né? Deu uma vez não adianta nada, não tem cura, tem que cuidar e rezar. E já cheguei nos quarenta e oito, daí a coisa é mais complicada. Já cansei de ir em posto, mas não adianta. Tenho uma lista de mais ou menos uns seis remédios, mas tomar isso tudo todo dia não dá.
— Que bom que a senhora trabalha e ensina esse menino lindo que estudar é importante. Sabe por que é importante, Marlo?
Os carrinhos estacionaram com a frente encostada na sacola de viagem, lado a lado, quarenta e cinco graus. Ele virou a cabeça. Sorriu.
— Educação nos dá mais chances na vida. Você vai crescer e arrumar um trabalho. E aí não vai precisar ficar aqui na rua.
— É o que eu falo com ele. Mas cê sabe, né? Educação tá difícil. Ele tem dificuldade de ler e escrever, mas já está melhorando. Eu é que às vezes faço ele apagar tudo e escrever de novo pra treinar.
— Isso mesmo, tem que treinar.
— As professoras já não interessam mais pelos alunos. Se ele passar, bem, se não passar o problema não é delas. Ninguém cobra dele. Os meninos estão largados. Ai, Deus! Quando isso vai melhorar? A gente trabalha honesto pra cuidar dos meninos. Tenho cinco no total. Graças a Deus ninguém fuma, ninguém bebe. Pelo menos isso. Já é uma vitória. Mas eu bem que queria que eles tivessem uma educação melhor. Hoje tudo ganha só um salário e olhe lá! Mas ninguém tá no crime. Isso, hoje em dia, é grande coisa, né?
— Mas olha, tem muita professora boa por aí. Mas se a do Marlo não é, ele precisa ajudar fazendo a parte dele que é estudar, fazer os deveres de casa, participar da aula.
Ele me olhou. Os olhos castanhos sorriram.
— Tem professora boa e tem gente boa, no mundo. Mas vô tecontar: tem dia que sou xingada até. Mas não tô roubando ninguém e nem obrigo as pessoas a me ajudarem. Dá quem pode. Ou, assim como você, a pessoa pode comprar uma bala. Se quiser! Que eu não te obriguei, né?
Um homem saiu do banco. Uma nota de dez saiu da mão dele, pousou na dela e lá ficou enrolada até o final de nossa conversa: um apego, chamego de quem andava sumido.
— O importante é que a senhora é honesta.
— Ah, menina! Tem gente que pensa assim não! Uns homens gritam pra mim “sua vagabunda, vai trabalhar”. O sujeito dorme mal, acorda invocado, sai de casa triste e vem descontar em mim que só quero ganhar um dinheiro pra comprar comida e educar esse aí, ó.
A prosa acabou com um aperto de mão, as devidas apresentações e uma promessa de voltar para saber se Marlo passou.
— Que coisa, mãe. Por que tem gente que xinga a Maria Aparecida?
— Porque tem gente que não tem respeito.
— Imagina! “Vai trabalhar”! Ela já está trabalhando, não está?
— Está. Ela vende bala. É vendedora.
— E merece respeito.
Ainda não reencontrei Maria Aparecida.