— Naquelas rugas, habita a memória. A bengala serve para sustentar o que… Enfim, a vida. Naquele mexer inquieto perpassam pensamentos de outrora e de agora. Onde estarão? Ali, vê a passarela por onde sonhos e o amor passavam, mas já não passam mais.
O homem, o filho. Todos partiram. Ou talvez ainda haja esperança. E eis que ela vê o pequeno. Quer gritar, correr para abraçá-lo. Já não pode — as pernas não respondem aos comandos.
Mas eu não gritaria. Faria nada! Foi ele quem fugiu.
— É louca?
Não. Louco é você. Não deveria escrever essas coisas.
Sabe lá o que podem pensar?
— Nada.
Você não sabe…
Não conhece todos os mistérios da vida de um escritor.
Sobretudo alguém assim… Como você.
— Assim como?
Moreno. Bonito. Mas…
— Vai ficar me cantando enquanto seu filho está ali, a seu alcance, depois de dias sumido? Não teria que gritar agora? Talvez fazer esforço sobre-humano para correr até ele.
Não estou te cantando. E vê se não escreve: “sublime”. Seria mais um horrível clichê! Você pode ser melhor que isso.
— Não foi nisso que pensei.
Sei lá o que pensou. Você que é o escritor e manda aqui.
— A velocidade. A correria. A pausa. Enquanto isso…
Muito bem. Me surpreendeu.
— Pássaros voam calmamente.
Voltou a ser clichê. Vamos lá! Crie algo que me desnorteie.
— A bengala claudica como salto quebrado. Mas o tempo é fluente ao ditar seus segundos. Aos poucos o filho já não está…
Espere! “Lado a lado com ela” funciona? Qual era mesmo aquele dia? Onde eles estavam? Falta informação aqui. Tudo se esvai. As luzes parecem piscar. Ou serão meus olhos? Somente uma imagem vem à mente. Agora insistente-mente.
Aceita ser minha musa?
Está louco?
— Vamos! Aceite ser minha musa. Assim estará em todos os textos.
Vou pensar.
— Não pense muito. Por favor. Preciso de você.
Já sou sua. Você é o escritor. Lembra?
— Preciso te ouvir dizer que é minha musa.
Que história vai contar, afinal? Estou confusa: primeiro fala de uma mãe que encontra o filho agora essa coisa de musa? Seus leitores vão desistir. Fecharão este texto.
Organize-se. Um escritor precisa saber qual é o tema central da história.
— Você é sábia. Aceite ser minha musa. Estou só. Minha profissão é solitária.
Você deve ter feito algo para merecer isto: solidão.
— Não é isso que quero que diga. Vamos! Basta pronunciar s…
N…
— Não!
Isso mesmo. Não!
— Digo: Sim!
Pois é. Você diz sim. Mas eu digo não.
Foco! Mantenha o foco e termine esta história.
— Viu porque tem que ser minha musa? Você me inspira.
Então vou te ajudar:
Ele precisava admitir que já não tinha mais talento.
— Pare! Isso eu não escreveria.
Precisava fechar aquele notebook e jamais olhar para o equipamento.
— Como assim? Escrever é minha sina.
De seus dedos, somente clichês pulavam para a tela. Ele finalmente decidiu:
— Chega! Você agora está morta. Acabou. Não vou apenas fechar essa máquina. Vou desinstalar o software. Doarei este computador. Você morreu.
Uma pena. Nem mesmo encontrou seu filho e perdeu a oportunidade de estar comigo.
Isto é clássico: A criatura se vira contra o criador. Mas eu sou mais esperto. Lembre-se, sou dono da história. Acabou.
Agora é só clicar aqui…
Ufa. Finalmente me livrei dele.
Acho que vou tentar uma escritora agora.
Este texto foi publicado na Revista Rio Total