“No 1984 de George Orwell a sociedade era consciente de que estava sendo dominada; hoje não temos nem essa consciência de dominação” — Byung-Chul Han
O sistema em que vivemos controla os sujeitos até o ponto de todos nos tornarmos iguais e expulsarmos os diferentes. O que vale é a existência comercializável. Vidas que seguem o padrão de quem está no poder. E nessa busca desenfreada por sermos aceitos, por vezes esquecemos de ser — de sermos nós mesmos; de sermos indivíduos dentro da sociedade; de sermos uma comunidade. Isso acontece no âmbito de todas as questões que nos envolvem: política, gênero, saúde, educação, moda, alimentação, relações interpessoais.
Em 2016, Eliane Brum escreveu em um artigo: “estamos sempre, de algum modo, trabalhando, fazendo networking, debatendo (ou brigando), intervindo, tentando não perder nada, principalmente a notícia ordinária,”. E eu ouso acrescentar: na correria dos cliques na internet, esquecemos de ler, de pensar e, novamente, de ser.
Estamos trocando vida por algoritmos, essa palavra que tantas pessoas têm repetido, sem, talvez, compreender seu verdadeiro problema. Segundo o dicionário Aulete, algoritmo é uma “série fixa de tarefas, ações, raciocínios etc. que, realizados passo a passo, levam a determinado resultado pretendido” —, e seu principal efeito sobre nós não é termos menos curtidas ou menos visualizações nos posts de Facebook. Ou seja, estamos nos alienando de nós mesmos quando permitimos sermos definidos por uma série fixa de qualquer coisa. Estamos nos alienando de nós mesmos, porque insistimos em apenas repetir discursos prontos que têm por objetivo controlar a sociedade, matando (às vezes literalmente) os diferentes. O principal efeito dos algoritmos é, portanto, o isolamento, a segregação dos indivíduos no que conhecemos como “bolha social”.
Somos hoje tão usuários de redes sociais que a maior parte de nossos amigos é virtual, e nessa onda contra o diferente nos conectamos, ou “fazemos amizade”, apenas com nossos iguais. Eliminamos, desamigamos quem não compartilha nosso ideal, como em um ato de violência punitiva. Vigiamos e punimos diariamente.
Narcisistas, decidimos nos colocar diante apenas daqueles que refletem nossa beleza, e nos afogamos em equívocos. Porque não será nessa bolha fechada ao nosso redor que aprenderemos qualquer coisa diferente.
Precisamos do outro. Precisamos do diferente.
Mais ainda: precisamos aprender a dialogar. Mas, para isso, é necessário descobrir quem somos. E para isso é essencial olhar para o outro, para o diferente e ouvi-lo. Aí teremos um diálogo, ou seja, troca de ideias.
A luta por poder é contra o diálogo, porque o diálogo faz crescer. Ele empodera, provoca reflexões, favorece mudanças. Quando um sujeito se opõe a isso, ele está se autoalienando. Ele cala sua própria voz junto com a do outro.
Parece que já é consenso: está difícil conversar, as pessoas estão agressivas, irredutíveis e têm a certeza de que conhecem tudo o que há sobre determinados temas; não existe mais a argumentação, a ferramenta do diálogo contemporâneo é o “unlike”, “unfollow” e adjetivos diversos que têm por objetivo humilhar e desqualificar quem é diferente. É como se “ponto de vista” tivesse sido eliminado do nosso vocabulário. Deram “unfollow” nesse conceito.
Cada vez mais ouvimos coisas como “não dá para conversar com você”, “desisti de tentar te convencer”, “estou perdendo meu tempo tentando te fazer entender” — e bloquear passou a ser uma ação corriqueira, assim como afirmar que as pessoas estão “de mimimi”.
Parece mesmo que estamos perdendo os sentidos. Em todos os sentidos! O único que ainda sobrevive é a visão, que usamos bem, na hora de avaliar se o Outro, na aparência, é igual ao Eu. Se não for, ele fica fora da bolha.
Mas diálogo não é convencimento. É troca. Não é verborreia. É escuta. Não é aparência. É vivência.
Parece que esquecemos como conversar e preferimos evitar debates. Mas, sobretudo, parece que não sabemos ouvir — nem ler posts. Enquanto isso, o sistema nos controla e nós nos iludimos com uma falsa felicidade consumista, que valoriza o material em vez da vida. E esperamos o dia em que seremos todos iguais, felizes curtindo e compartilhando as mesmas fotos. E os mesmos memes, claro! Como se isso bastasse.
A solução é sair da bolha por meio do diálogo e transformar nosso conhecimento. Só assim poderemos moldar o sistema para favorecer a vida do ser humano, em vez de permitir que o sistema nos molde para favorecer o consumo — de produtos, de ideias, de comportamentos.
Mas então, como dialogar?
10 dicas sobre como dialogar
1. Um diálogo acontece entre pessoas de pensamentos diferentes. Caso contrário, é um monólogo, um discurso, uma palestra etc. — uma pessoa fala e a outra só concorda. E tudo fica como dantes no quartel de Abrantes, como dizia meu avô. Ninguém muda nem aprende com a descoberta de um outro ponto de vista.
2. O tempo de fala de todas as pessoas participantes do diálogo deve ser respeitado. É desagradável conversar com uma pessoa que interrompe, seja porque não concordou com você, seja porque você parou para respirar. Todo mundo tem direito de falar. E de respirar!
3. As pessoas que não estão usando o tempo de fala devem ouvir quem está falando. É no mínimo falta de consideração soltar o verbo, esperando que as pessoas te escutem, para depois ficar calado e prestar atenção em tudo a seu redor, exceto na pessoa que está com a palavra depois de você.
4. Aceitar que uma pessoa tem argumento contrário ao seu, não faz mal nenhum. Você não vai deixar de ser quem é. Muito pelo contrário! É aí que você se destaca. Tanto você quanto a outra pessoa vão se conhecer. Além disso, dificilmente chegará um dia em que todas as pessoas, sem exceção, gostarão de jiló, já que o gosto pessoal depende de diversos fatores.
5. Para discordar de uma pessoa não é necessário negar a validade ou a veracidade do que ela fala. Isso seria contrário à proposta do próprio diálogo, porque você não estaria “trocando ideia”. Afinal, trocar significa receber alguma coisa e dar algo diferente em troca. Fundamentar seus conhecimentos mantém a proposta de dialogar. E é sempre bom lembrar que existem diferentes pontos de vista.
6. Perguntar se uma pessoa realmente acredita no que está dizendo não é argumento. Se eu te afirmo que não gosto de jiló porque ele é amargo, me perguntar “Você realmente pensa que jiló é amargo?” não é argumento a favor do jiló; é falta de argumento e, talvez, incerteza do contrário.
7. As vozes envolvidas no diálogo devem ser assertivas. Ou seja, as falas devem ser afirmativas e claras em seus objetivos.
8. Assertividade não é agressividade. Você não precisa gritar. Basta falar em um tom de voz que seja possível escutar. Gritos são grosseiros. Mais que isso, gritos demonstram despreparo, falta de argumentos. O mesmo vale para xingamentos.
9. Todo diálogo deve acontecer em igualdade de condições. Diferenças de formação, classe, gênero, idade entre as pessoas que conversam não devem ser motivo para prepotência nem para excesso de humildade.
10. Diálogos são horizontais. Hierarquia não tem nada a ver com autoritarismo. Aliás, autoritarismo não tem nada a ver com nada. É desnecessário quando você tem argumentos e confiança em seus argumentos.
Vamos continuar esta conversa? Porque ainda precisamos falar sobre: mimimi, culpabilização da vítima, responsabilidade social, lugar de fala, escrita feminina.
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Ana Luiza Libânio é autora dos livros A história de Carmen Rodrigues e 17.
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